Nos dias que antecedem o fim da semana, observo ao longe, a menina moça
que tem grandeza de mulher. Seu caminhar é despojado. Envolto de graça e
inocência, traz consigo uma simplicidade comum. Em meus olhos, vejo beleza
incomum. Dela? Conheço o nome e uma estória. O resto. Apenas ouvi falar.
Ouvi dizer, que consome horas, assistindo seus filmes prediletos. Fato
este, que não a priva de novas descobertas. Há sempre espaço para um novo
mocinho, ou um novo bandido talvez. Penso que o último não tenha tanta chance
assim. Sei também de suas leituras habituais. É apaixonada pela literatura,
pelo arranjo das palavras que contam belas estórias. Gosta de ler até mesmo
antes do banho, que com isso torna-se demorado. Sem saber, causa apreensão, às
vezes, revolta, de quem encontra-se a sua espera. No seu desfecho, não haveria
final melhor que este. Ela ressurge com os cabelos molhados e com sorriso
largo, gentil e sincero. A revolta se dissolve. O suspense vai embora levado
nas gotinhas de água que correm pelos fios negros em formato de caracóis.
Conto, tudo isso. Com a incerteza do ouvi dizer. Mas, uma estória dessa
moça. Vi. E esta, eu posso contar com quase todos os detalhes.
Seguia pelo passeio, com seu conhecido caminhar. Antes do préstito, abusarei
do luxo e darei a devida importância que seus passos exigem e merecem, em cada toque com o
chão. Seus passos por assim dizer. São suaves como um eufemismo.
Porém neste dia, em meio ao meu deleite, pude ver mais que seu despojo. Sua
distração aparente era bem na verdade, distração aos olhos de quem a olhava. Ela escondia
seus olhos atentos. “Por acaso já sabia ela, de minha constante vigilância?”
Ela parou próxima a um pequeno arbusto e ali ficou. Estática. Por alguns
instantes. Da distância segura na qual me encontrava, confesso que não foi
possível ver o mesmo motivo que à fizera mudar o final de seus passos. Acredito
que este, foi um pensamento semelhante dos meus iguais, que a esta altura, à
fitavam com expectativa compartilhada. Aproximou da pequena árvore lenhosa, agachando-se
com uma das mãos estendidas. “O que será que está fazendo?” A curiosidade
aumentava. E movimentos inaudíveis saíam de seus lábios.
O mistério revelou-se quando a moça ergueu-se sobre sua bifurcação
prolongada, desenhada por uma imaginação primorosa, ou fantasia de poeta, que
sustentava seu corpo. Nas mãos. Um cãozinho abatido, sem forças até mesmo para uivar,
seu triste pedido de socorro. No contato da pele, a dor transferida e refletida na face
angelical da moça. Dor refletida, e a repulsa por tamanha sevícia. O cachorro
fora queimado na retaguarda e suas patas traseiras em carne viva, deram lugar
as pegadas, um rastro contínuo com em tom escarlate que tingia o chão..
Penso que a moça, pensou muitas coisas. Mas a primeira coisa que fez, foi dar
ao cachorro, um nome...
Depois, ouvi dizer que a moça levou a pequena criatura em uma clínica
veterinária. Vim, a saber, que a moça era conhecida. Sua brandura traduzida em
ações era assunto comentado nas conversas de roda. Foi quando também ouvi, um
tanto de outras coisas.
O cachorro. chegou desfalecido na Rua Vereador Kavffs Abraão. Porém, não
creio que as feridas fizeram deste fim, o motivo. Durante a curta viagem, interminável para ambos. Certamente que o cachorro fora embalado por um cântico,
que lançou no ar uma voz suave. Você vai ficar bom! Você vai ficar bom! Calma!
E esta foi a minha resposta.
Dias antes, sentei na mesma mesinha de todos os dias. Nos intervalos de
aula, que indevidamente extendo, vou para o mesmo barzinho de fachada
vermelha. Neste dia o caminhar da moça,
era mais firme. Pisava duro. Se seus pés fossem mãos, diria que esmurrava o
chão. Era também, rápidos. Rapidez que deixou o despojo para trás. Em seu rosto,
preocupação. Perguntei-me o que fazia ela com uma bolsinha dourada, dessas que
se usa na escola. E porque guardava ali dinheiro, que surgia de diferentes
mãos. Esta foi uma cena que se repetiu alguns dias.
Depois de uma semana, o cachorro já estava em sua plena forma.
Impressionante ver sua personalidade demonstrada na altivez de seus passos.
Suas pegadas de um lado para o outro, pareciam fazer escrituras no solo. Ignóbil
que sou, não digo com certeza. Mas acredito que havia ali, escrita alguma coisa
sobre felicidade. No pescoço uma coleira. Deveras que uma precaução. Não me
lembro de ver a corda fina retesada, durante o tempo que estive ali.
O sorriso da moça estava de volta. Desfilava com seu novo amigo com
alegria. De certa forma era também uma prestação de contas. Via se satisfação em
todos os rostos a mim familiares. Quando pequeno, ouvi dizer que o sorriso dos
cachorros encontrava-se no movimento descompassado e enérgico da cauda. A
julgar pelo fato, certamente o cachorro gargalhava à ufa. E o intervalo de vinte minutos durou quase
uma hora.
Se eu fosse diretor deste filme, e se este fosse um filme de fato, que
bom desenlace seria. Amor descoberto no primeiro encontro e uma entrega
desmedida. Sim. Seria a melhor cena se no roteiro da vida, as coisas boas não
ficasse nessa de partir. Assim. Lá foi a moça ladeira abaixo com sua Parati 91.
Destino. Avenida Theobaldo Alves, Nº 601.
Creio. De todos os cheiros do mundo, o mais afável seja o das crianças. O
cachorro pareceu concordar comigo, quando saltou do confortável banco dianteiro
em direção ao portão que se abria. Quatro crianças deram lhe boas vindas. Um
abraço em cada ponta no novo membro da família. O cachorro, envolvido pelo
cobertor humano de amor, viu se desconcertado, envergonhado talvez, da sua
efusão não controlada. Hesitou no meio dos abraços, sem saber muito para onde
ir. Olhou para moça como se quisesse dizer, “não estou tão feliz assim...”
Porém nada adiantaria. A cena final estava escrita.
A moça aproximou-se. Seu sorriso permanecia no rosto. Suas mãos tocavam a
barra do vestido num lugar entre o quadril e o joelho. Secou-se o suor
levemente frio. Vieram os abraços. E abraços carinhosos que voltam. Ah! Um
beijo... Cachorro parado olhando uma distância que aumenta. Moça que caminha de
costas. Segura! Segura! Vai vir à lágrima. Não! Rápido dá-se as costas...
Vai se a moça. Entra o cachorro. Eu... Sento na mesinha de sempre no
barzinho de fachada vermelha e vai-se em frente o roteiro. Guardo novamente o silêncio
que me permite contar. Ouvi dizer...